No contexto das comemorações relacionadas ao Dia Internacional da Mulher (8/3), a AMATRA XV entrevistou a Juíza Natália Scassiotta Neves Antoniassi. Uma mulher com o perfil médio das Associadas.
Ela ingressou no Tribunal Regional do Trabalho da 15.ª Região aos 19 anos, como Técnico Judiciário. Aos 27 anos foi aprovada e empossada como Magistrada no mesmo Tribunal. Atualmente, exerce a judicatura como Auxiliar Fixa na 3.ª Vara do Trabalho de Piracicaba/SP.
Natália Scassiotta Neves Antoniassi é formada em Direito pela PUC/Campinas. Tem Pós-graduação em Advocacia Cível pela Fundação Getúlio Vargas e, Especialização em Economia do Trabalho pelo CESIT/Unicamp.
Casada, é mãe de Luísa (4 anos) e de Ana Júlia (7 anos).
Pessoa muito preparada e competente, auxiliou a AMATRA XV no Projeto Trabalho, Justiça e Cidadania – TJC e, em sua passagem por Americana/SP, proferiu sentença com grande repercussão na mídia (clique aqui).
Leia a entrevista:
AMATRA XV: A senhora ingressou na Magistratura em outubro de 2.010. Conte-nos um pouco da sua trajetória, os fatos que considera mais marcantes, em especial no período de preparação ao concurso e nos primeiros anos de judicatura.
Natália Scassiotta Neves Antoniassi: Eu ingressei na PUC Campinas em 2.001. Andando pelo centro de Campinas, recebi um folheto de concurso público que me mostrou duas coisas: a primeira era que existia uma Justiça do Trabalho; a segunda era que eu podia dobrar meus rendimentos e receber mais de R$700,00 de salário mensal (até então eu trabalhava para a Prefeitura de Americana e recebia pouco mais de R$350,00 por mês).
Ao ler o edital, descobri que existia a CLT! Lembro que na escola municipal onde eu trabalhava tinha uma CLT velha no armário. Não pensei duas vezes, li a CLT inteira. Mas ainda não tinha experiência na faculdade para entender que as leis mudavam. Logo, eu estudei tudo sobre os classistas que tinham sido extintos anos antes... Mas na época deu certo e foi o suficiente para a aprovação no concurso para técnico judiciário.
Iniciei em 2.002, em Limeira, e no final do mesmo ano consegui transferência para a 4.ª VT de Campinas.
O trabalho dentro da Vara me permitiu entender tudo o que eu aprendia no curso, mas acabou influenciando por completo minha trajetória. Não havia caminho para mim que não passasse pela Justiça do Trabalho.
Depois de alguns anos na Secretaria, atuei por 1 ano como secretária de audiências e fui convidada para ser assistente da Ana Cláudia Torres Vianna, a quem muito admiro e com quem aprendi muito sobre o que era necessário para passar no concurso. Fiz diversos cursos no período, mas era redigindo as sentenças que eu realmente estudava.
Confesso que assim que me formei na faculdade, apesar do trabalho, demorei um pouco para engrenar nos estudos, porque pensava que ainda faltava muito tempo para completar os 3 anos de atividade jurídica. Prestei alguns concursos como teste, mas sequer passava da primeira fase. Quando percebi que o tempo estava se aproximando, conheci a amiga Camila Ximenes, concurseira também à época, que me ensinou a passar na primeira fase.
Só precisei passar pela primeira fase uma vez e foi no Tribunal Regional do Trabalho da 15.ª Região. Passei nas fases seguintes focando nas habilidades exigidas, sempre com foco no princípio de que não basta saber, tem que mostrar que sabe. Fiz curso de redação na mesma época e organizei os tópicos como já fazia no trabalho. Cheguei na fase oral também no concurso do TRT da 6.ª Região, mas felizmente passei primeiro no nosso TRT e não precisei passar pela experiência duas vezes. Fiz muitos amigos junto àqueles que passaram comigo no 24.º concurso e descobri que julgar é muito mais que minutar uma sentença.
Lembro-me da primeira sentença que eu fiz e como me doeu! Que medo de errar! Demorou um tempo para eu assimilar que se errasse haveria pessoas mais experientes que eu no TRT para reanalisar. A mudança na perspectiva do trabalho que eu tinha como servidora para Juíza foi gritante.
Eu acreditava que tinha experiência em todas as áreas da primeira instância, mas percebi que a técnica não te prepara para olhar no olho do jurisdicionado, sentir o peso da responsabilidade e perceber que a lei não vai fazer justiça ou que a prova caminhou no sentido contrário do seu próprio sentimento do que ocorreu. A responsabilidade que veio junto com o cargo superou todas as minhas expectativas. As dificuldades vão mudando conforme amadurecemos como seres humanos, mas cada fase tem seu próprio desafio. Revisitando minha própria história, vejo quanto mudei nessa caminhada e o quanto a Justiça do Trabalho e o TRT da 15.ª Região contribuíram nesse caminhar.
AMATRA XV: O papel da mulher na sociedade tem se alterado. Embora ainda existam dificuldades, a mulher tem alcançado posições de liderança e de autoridade, na iniciativa privada e nas carreiras públicas. A senhora, uma Magistrada, é exemplo disso. Qual a sua visão, e experiência, sobre esse tema?
Natália Scassiotta Neves Antoniassi: Engraçado olhar para trás hoje e perceber como era privilegiada na minha própria alienação. Minha família era de classe média, mas a prioridade sempre foram os estudos. Assim, estudei em escola particular por toda a minha vida, desde a educação infantil até a faculdade, ainda que isso nos impedisse de viajar e quaisquer luxos. Nesse cenário, nunca me senti discriminada por ser mulher. Nunca ouvi que não poderia atingir o lugar que eu quisesse, seja na minha família, seja nas escolas que eu frequentei. Sempre fui uma das melhores alunas em ambientes em que a meritocracia era aplicada.
Como tenho uma irmã, mas não um irmão, nunca notei diferenças no tratamento doméstico. Sabia que a minha mãe não trabalhava e que meu pai nos sustentava, mas outras tantas famílias eram assim e meu pai era constantemente transferido, o que não permitia que a minha mãe tivesse um emprego.
A única coisa que me lembro era que a minha mãe frequentemente repetia para que eu trabalhasse e não dependesse de homem para me sustentar, mas não achava que nesse comentário havia uma tentativa de me proteger de um mundo machista.
Com a maturidade comecei a perceber as sutilezas nos tratamentos, nos comentários sexistas, mas naquela altura aquilo já não me prejudicaria mais. Tive também a oportunidade de dar outro olhar à minha própria família e perceber coisas que sempre estiveram ali, mas que eu nunca tinha notado. Aqui cabe ressaltar a alienação que mencionei acima. Não que o machismo não estivesse presente, mas eu simplesmente não percebia porque naquilo que realmente importava ele não estava presente, graças a grandes mulheres que me rodeavam naquele momento.
Grande mérito disso é do próprio TRT. Como ingressei na 15.ª Região com 19 anos, logo no fim da adolescência, encontrei um cenário em que nada indicava a existência de diferenças, já que só fui subordinada a mulheres, diretoras e juízas, mulheres estas que sempre me estimularam a fazer o que quisesse e que somente eu poderia me impedir de chegar aonde quisesse. Então nunca me ocorreu que não seria possível ser juíza ou que essa carreira não seria para mim.
As dificuldades por ser mulher somente se apresentaram para mim em um primeiro momento já na magistratura e com mais força quando me tornei mãe. Percebi que a mulher tem que ser muito mais dura para ser respeitada ao exercer as mesmas funções que os homens, o que gera mais desgaste, físico e mental.
Consegui chegar aonde cheguei porque sempre ouvi que era possível e capaz. Procuro repetir esse comportamento com as minhas filhas e com todas as mulheres que eu conheço, já que a sociedade já evoluiu muito, mas ainda há um caminho muito longo a trilhar. Sou muito grata à minha família por ter conseguido me poupar tantos dissabores e tornar o que eu faço possível de tantas formas diferentes.
AMATRA XV: Segundo o “Diagnóstico da Participação Feminina no Poder Judiciário”, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ em 2.019, “o percentual de participação feminina na Magistratura ainda é baixa”. De acordo com esse mesmo documento, a “Justiça do Trabalho (50,5%) e a Justiça Estadual (37,4%) são as com maiores percentuais de mulheres na Magistratura em atividade”. Ainda: “Quanto ao total de Servidores, as mulheres são a maioria nas Justiças Eleitoral (60,3%), Estadual (58,2%), do Trabalho (52,9%) e Federal (50,4%)”. Como a senhora vê a participação da mulher no Poder Judiciário, em especial na Justiça do Trabalho?
Natália Scassiotta Neves Antoniassi: A Justiça do Trabalho é o ramo mais democrático no acesso à mulher, seja pela natureza das demandas ou mesmo por questões culturais.
Se olharmos para a estatística separando primeiro e segundo grau, percebemos que a tendência é que as mulheres se tornem maioria na Justiça do Trabalho nas próximas décadas. Mas a situação nos comprova o que percebemos no dia a dia: por um lado, as mulheres têm melhor escolaridade e por isso maior sucesso nos concursos públicos. Mas o medo da discriminação e a busca pela estabilidade empurram muitas mulheres para o serviço público porque ali tem garantias que não tem na iniciativa privada.
Vamos ser honestos: onde a mulher pode ter filhos sem medo de dispensa pelo empregador? Quando a mulher pode se afastar para levar seu filho no médico sem medo de represálias? O sucesso da mulher na iniciativa pública seria ótimo não fosse a motivação estar na dificuldade de atingir o sucesso na iniciativa privada e ainda assim manter o projeto de vida que tem para si e para a sua família.
Também devemos destacar que é nítida a diferença da presença das mulheres entre os servidores e magistrados. Novamente analisando dados empíricos, vemos que a natureza multitarefa das mulheres dificulta o foco nos estudos para as carreiras cujos concursos exigem maior conhecimento.
A mulher casada, com filhos, ou outros diferentes tipos de dificuldades familiares, cujas responsabilidades não raramente recaem com maior peso sobre si, tem inúmeras tarefas a cumprir e muitas vezes não conseguem dedicar a quantidade de tempo e energia necessários para a aprovação, o que leva a desistência.
Durante minha fase de concurseira, vi muitas mulheres desistirem dos concursos para a magistratura em razão do casamento ou de gravidez. Mas acredito que estamos avançando de forma constante e consistente, passo a passo. O fim da estabilidade dos novos servidores, se aprovado pelo Congresso, talvez traga mudanças nesse panorama. Teremos que aguardar para ver o que virá.
AMATRA XV: A Magistratura é uma atividade que exige muito compromisso pessoal e de tempo, com a atividade judicante em si (gestão da equipe e da estrutura física da Unidade Judiciária, audiências, sentenças e outros pronunciamentos judiciais etc.), em vários casos, também, com deslocamentos. De que maneira a senhora lida com esse alto grau de comprometimento, de um lado, e os relacionamentos familiares, de outro lado?
Natália Scassiotta Neves Antoniassi: A missão é muito difícil. Sempre fui perfeccionista e tive que abrir mão dessa característica com o passar do tempo. A pior parte de tudo é lidar com o sentimento de culpa por não ser capaz de fazer tudo o que espero de mim mesma.
Gostaria de fazer pelas minhas filhas tudo o que a minha mãe fez por mim e por minha irmã, mas não consigo. Gostaria de me manter estudando, fazer um mestrado, mas não dá tempo. Gostaria de fazer minhas sentenças na mesma semana que vem conclusos, mas não dá tempo. Gostaria de dedicar mais tempo em audiências, mas se fizer isso perco o horário de rendição da empregada que me aguarda com as crianças. Olha tantas coisas que gostaria de fazer e não faço!
A sensação constante é que nada sai tão perfeito como deveria e que estou sempre em dívida com algo ou alguém. Imagino que muitas mulheres se sintam como eu, equilibrando pratos diariamente, rezando para que nenhum caia.
AMATRA XV: A busca da igualdade real, entre homens e mulheres, apresenta desafios. Ainda não existe plena isonomia em termos profissionais e existem questões culturais como a divisão de tarefas domésticas e do cuidado dos filhos, sobretudo nas ausências do lar por motivo de trabalho. Qual a vivência da senhora com esses temas e outros similares?
Natália Scassiotta Neves Antoniassi: Esse é o ponto de maior preocupação para mim hoje. Não é fácil mudar o nosso próprio pensamento enquanto mulheres e é mais difícil ainda mudar uma cultura arraigada em uma sociedade machista. Consola saber que a luta não é só da brasileira, mas de todas as mulheres no mundo.
É perceptível que o machismo fica como mensagem subliminar em muitas situações familiares ou sociais, para não falar do que é explícito. Sobre esse não há muito o que falar. Somente o surgimento e crescimento de mulheres fortes em diversas áreas para desconstruir esse pensamento que nos diminui há tanto tempo.
Mas precisamos também combater o machismo que aparece em nós mesmas por questões culturais, refletindo até que ponto colaboramos com a manutenção da desigualdade entre homens e mulheres, mesmo sem querer ou perceber. Lógico que toda generalização é burra, mas não raro queremos reproduzir nas nossas vidas o que nossas mães fizeram, mas não somos nossas mães e não vivemos na mesma época.
Nesse sentido, quantas vezes não assumimos sozinhas todas as atividades da casa, com os filhos, além do marido e do trabalho, sem que o nosso companheiro tenha oportunidade de fazer muitas coisas, porque fazemos mais e melhor do que qualquer tentativa deles? Eles se acomodam e nós nos desesperamos.
Sem prestar atenção, procuro fazer o que a minha mãe fazia, mas ela não trabalhava e sua única responsabilidade eram as filhas (o que já seria trabalho para duas vidas! Risos). Lógico que cada família tem uma dinâmica diferente, mas a reflexão nos mostra que a desigualdade muitas vezes está presente em pequenos detalhes e nem sempre conseguimos olhar e identificar as situações como problemas.
Se precisamos dormir fora de casa em razão do trabalho, o fazemos com culpa, ainda que haja outras pessoas cuidando de nossos filhos. Essa culpa vem da exigência de nós mesmos de estarmos presentes em todos os momentos. Será que os outros exigem isso de nós ou será que somos só nós? Ainda não tenho essa resposta. No momento, a fixação me permite voltar para casa todos os dias, mas a sombra do possível fim da fixação me permite sofrer por antecipação, trazendo esse assunto à baila.
Nosso caminho passa pelo diálogo constante e reflexão para perceber os menores sinais em nós mesmos e naqueles que nos rodeiam. Quero crer que estamos em um processo de mudança de paradigmas e toda mudança é dolorosa por sim mesma, mas tem que acontecer. Não podemos ser o único recanto em que os salários são iguais na mesma função. Por isso, toda a relação familiar tem que ser repensada e para a inclusão da mulher, essa é mais uma dificuldade.
AMATRA XV: Qual a sua mensagem para as mulheres que sonham com a carreira da Magistratura?
Natália Scassiotta Neves Antoniassi: Nunca desistam de seus sonhos e jamais permitam que qualquer pessoa, sob qualquer pretexto, diga que essa carreira não é para você. É uma carreira difícil, que exige muito no silêncio, mas para aqueles que a amam, todo o preço vale a pena.
ESPECIAL DIA INTERNACIONAL DA MULHER
AMATRA XV entrevistou a Juíza Natália Scassiotta Neves Antoniassi, que falou sobre suas experiências, desafios e conquistas